quinta-feira, 3 de novembro de 2016
A partir de
determinada altura, os especialistas em literatura descomparada e seguindo as
metodologias mais avançadas na área dividiram a obra de Jeremias M. Taveira em
duas fases: a pré-madura e a fase madura. A primeira correspondia à fase que ia
dos seus oito anos aos vinte, e a segunda dos vinte para cima. Hoje, porém,
especialistas jeremianos avançam com uma terceira fase (chamada pós-madura),
correspondente àquela em que Jeremias aborda as questões do mal segundo a
teoria da maldade profokiniana (especialista russo na área do mal) mas igualmente
àquela outra em que Jeremias aborda a questão metafísica e ontológica da
matemática (na sua perspetiva única de abordar e inventar problemas que não
lembrariam a ninguém), a saber, se existem
números no ser das letras. Forjando uma ontologia (e filosofia) própria,
Jeremias distinguira-se das investigações filosóficas da ontologia matemática,
de acordo com a qual se busca responder ao problema dos objetos matemáticos,
isto é, se existem números, conjuntos, pontos, etc.; e se a existir, se existem
independentes do sujeito; Jeremias, muito à frente, como sempre é apanágio dos
iluminados pela centelha da genialidade, procurava saber se há números nas
letras. De um modo geral, Jeremias perguntava-se se em cada letra há um número:
se em A existe um 1 (assim representado: A*1, ignorando a lógica e
atribuindo o asterisco só porque era apelativo esteticamente) e assim
sucessivamente. Esta indagação filosófica levou os especialistas à loucura,
porquanto estavam efetivamente na confirmação de um génio para o qual ainda não
tinham um esquema conceptual, e em razão disso não tinham como explicá-lo (com
efeito, esta era a vantagem de Jeremias, na medida em que inventava as maiores
barbaridades que, aos olhos dos outros, eram vistas como grandezas
intelectuais). Assim, em face desta falha conceptual, académicos de todo o
mundo começaram a estudar a fundo sua obra com fito de poderem não só
entendê-la efetivamente, mas também promoverem seminários.
O burburinho gerado
em torno da obra de Jeremias levou a dizer-se que há um antes e depois de
Jeremias. Desde os mais vetustos escritores aos mais insignes académicos, a
unanimidade foi (e é) a palavra mais usada. Uns afirmaram que a obra de
Jeremias perdurará no tempo até quando o tempo for tempo. Outros afirmaram que
a sua obra será estudada por muito tempo, resultando em teses de doutoramento e
pós-doutoramento e pós-pós-doutoramento e quem sabe uma nova qualificação
académica, tal a força da obra de Jeremias. Outros ainda afirmaram que se ele
não receber o Nobel então a consequência será que o prémio deixará de existir,
pois não pode um escritor com este talento não receber o Nobel. Enfim, e em
resumo, Jeremias tornou-se com efeito num escritor cujo talento ultrapassa já a
própria definição de talento.
A obra onde Jeremias
disserta sobre o mal foi aquela a que ele deu o nome: O Mal – a Visão de Quem Vê Mal. Escrita quando Jeremias esteve
hospedado numa casa de retiro para escritores, explora o mal do ponto de vista
de um cego. A personagem criada é uma personagem incaracterística, sem cor, sem
cabelo, sem sobrancelhas, sem pestanas, mas com boca e nariz e orelhas, e
olhos, embora cegos, e caga e mija como todos os seres humanos, mas também come
e bebe e vomita como qualquer ser humano, e anda como qualquer ser humano, e
ri-se como qualquer ser humano, e pensa como qualquer ser humano, e fode como
qualquer ser humano (exceto os padres, claro), e enfim é uma personagem igual
a muitas outras. Porém, distancia-se delas porque tem o mal consigo. O mal
nasceu com ela e vive com ela. É uma espécie de demónio que traz dentro de si
(segundo leitura apuradíssima dos seus críticos, académicos e legião de fãs) A
partir desta ideia, Jeremias explora a personagem de uma forma inusitada. A
personagem tem o nome de Judas (atribuição do nome muito discutida pelos
académicos) e vive numa residencial. Não tem pais nem familiares chegados e a
ajuda do Estado e de algumas pessoas permite-lhe sobreviver. Sendo cego, a vida
torna-se-lhe insuportável. Porém, lá vai vivendo como pode e aguenta a sua
solidão. No decurso da história vemos Judas a tropeçar num café próximo à
residencial e a cair na mesa em que estão sentadas umas pessoas a petiscar umas
coisas de bicho animal. Estas, todavia, não se levantam para o auxiliar, mesmo
sabendo que é cego. Uma delas, inclusive, pergunta mesmo se «é cego?», ao que o
Judas responde que sim, senhora, sou cego, embora a inquisidora soubesse que o
era. Desta passagem, diz-nos Jeremias: «a maldade que emanou do cego depois de
ter caído é a provada mais do que provada e cientificamente relevante para que
afirmemos que o mal é proveniente de quem vê mal, pois que, suponho e
explicarei mais à frente esta minha afirmação, se ele não visse tão mal não
teria caído, e se não tivesse caído não obteria a reação que obteve dos que foram
afetados pela sua queda, pelo que, concluo, a sua maldade é resultado de ver
mal.» Mais à frente explica-nos a sua teoria: « a maldade é um conceito
relevantemente epistémico que nos permite, de um ponto de vista da hermenêutica
da maldade, perceber que se à maldade não estivesse subjacente uma cegueira
epidérmica ela não existira. Sendo assim, ela existe.». Esta lógica (comummente
usada pelo genial Jeremias) foi entendida como revolucionária. Académicos
formularam-na assim: se P então Q, se R então S, e se Y talvez S (p#q. r/s…y –
s). As mudanças epistemológicas que resultaram desta formulação têm sido
escrutinadas ao mais ínfimo pormenor e não se sabe ainda aonde a lógica poderá
ir parar, tal a visão de Jeremias. Alguns têm aventado a possibilidade de que
Jeremias poderá ter encontrado a explicação lógica para o absurdo. Mas vejamos
o fim da história de Judas. O nosso autor encaminha a personagem para uma
situação dilema. Judas encontra-se numa ponte, e esta está prestes a cair.
Judas está no meio da ponte e a poucos metros dele encontram-se outras pessoas,
quer de um lado, quer do outro. Se Judas se mexer a ponte cai e as pessoas vão
atrás. Se Judas se mantiver quieto, a ponte não sofre qualquer abalo. Judas
está a olhar para o rio, embora não o possa ver. As pessoas que estão do lado
dele também estão mirando o lindo rio que passa sob a ponte. Nem Judas nem as
pessoas sabem que a ponte está prestes a cair. Não sabendo de nada (o que por
si só não é um dilema, como é bom de se ver), Judas dá um passo e a ponte cai,
morrendo todos que se achavam em cima dela. O nosso genial autor dá-nos pois
mais uma lição sobre a maldade. Judas provocou a queda da ponte porque é cego,
e mais uma vez conclui que a cegueira é a raiz da maldade. Ao longo dessa
magistral e «filosoficamente rica» obra, Jeremias «faz deduzir os seus
argumentos por meios falaciosamente acertados a fim de concluir que a cegueira
é com efeito a razão pela qual e a partir da qual a maldade existe no mundo»
(Hugo Cortez de La Muerta).
Porém, a filosofia do
mal de Jeremias não foi unicamente explorada nesta obra. Em outros romances
filosoficamente relevantes, Jeremias explora o tema do mal. As críticas a essas
outras obras não se fizeram esperar, à semelhança de tudo o que Jeremias produz.
Sobre a obra Anda um Homem à Caça da
Menina na Casa do Vizinho, escreverem os críticos: «Jeremias tem o dom da
palavra a faz-nos rever o conceito do mal através da ruína de um homem que
busca o prazer através do desassombro metafísico da maldade e onde a memória é
a auscultação do medo em que vive a sociedade moderna enclausurada numa redoma
identitária mas também constitutiva do ser humano em direção à morte (o ser
para a morte heideggeriano sobrevém aqui como em mais lado nenhum) e cuja
matéria é imaterialmente uma molécula saída do mais obscuro átomo de
infelicidade em que todos nós humanos vivemos» (Vasco Oliveira Martins); outro
crítico escrevera que «a forma é o poder de Jeremias» onde «a memória é a
matéria que nos transforma em todos humanos», donde que «o ser humano é a mais
bela construção de deus» (André de Marvila). Num lampejo de genialidade, um
outro crítico conclui que «se Jeremias não escrevesse o mundo não era o mesmo,
pois que dos seus livros podemos ver a ruína social e democrática a que chegou
a sociedade ocidental. Neste livro, Jeremias põe a nu todas as vicissitudes e
idiossincrasias do ser humano, em que o ser-aí de Heidegger sobressai de um
rompante filosófico e nos mostra os mistérios que subjazem ao ser humano, ser
humano este que já não o é, mas antes foi, pois tudo já fomos o que não somos.
E quem perguntar hoje pelo ser humano ou formular a pergunta “quem somos?”
certamente obterá como resposta: já fomos. Eis a lição que Jeremias nos dá
neste livro poderoso e filosoficamente rico em verdades absolutas, só
equiparável à Bíblia» (José de Bettencourt). No romance Passeando no Passeio da Calçada, Jeremias explora o mal do ponto de
vista da maldade em si e para si. Segundo entendidos, a maldade em si é aquela
maldade por si. E a maldade para si é aquela maldade a si. Disto resultou uma
concepção de maldade, ainda não muito explorada, em que o si fundamental para
toda a ontologia do mal é o si mesmo. Jeremias explorou em termos lógicos este
si, numa obra posterior, e formulou-o desta forma: se si, então si, se não si,
então não si. O que dá S (que representa o si) e o S (que representa o si).
Assim, temos: s @ s. donde que, s. Esta lógica jeremiana, dizem, tem
revolucionado toda a lógica. Porém, como os lógicos são homens astutos, vieram
a terreiro dizer, e passamos a citar, «a lógica de Jeremias não é senão uma
demonstração da sua indigência intelectual. Podemos afirmar convictamente que
Jeremias não percebe nada de nada de lógica, não domina a filosofia e as suas
teses são iguais àquilo que expelimos quando nos sentamos numa sanita». Estas
declarações foram de imediato atacadas pelos jeremianos, que acusaram os
lógicos de homens arrogantes e feios sem qualquer entendimento do que é o ser
humano, homens limitados às suas razões lógicas sem sentido» (Sociedade dos
Defensores de uma Filosofia Jeremiana).
Como podemos
verificar, a obra de Jeremias foi elogiada em todos os cinco cantos do mundo
(até nisto os jeremianos são diferentes, pois dizem cinco cantos e não quatro),
ora por académicos, ora pela crítica, ora pelos seus leitores. O seu sucesso é
proporcional, como está bem de se ver, ao número de leitores que foi tendo, e é
nesta perfeita sintonia que Jeremias tem sido elevado “ao maior intelectual
vivo” desde a morte do último intelectual morto.
Nas suas palavras,
escritas num poema de mil novecentos e noventa e qualquer coisa:
Sou um homem
despojado
Vejo a vida de lado
Quando me levanto de
manhã
Penso na mamã
Começo a escrever
Mesmo antes de beber
E quando termino
Julgo-me um hino
Jeremias é um man in
progress, que, em bom francês, quer dizer um homem burgesso.