Capítulo II A Maldade segundo Jeremias e as Letras dos Números e Outras Coisas Irrelevantes




A partir de determinada altura, os especialistas em literatura descomparada e seguindo as metodologias mais avançadas na área dividiram a obra de Jeremias M. Taveira em duas fases: a pré-madura e a fase madura. A primeira correspondia à fase que ia dos seus oito anos aos vinte, e a segunda dos vinte para cima. Hoje, porém, especialistas jeremianos avançam com uma terceira fase (chamada pós-madura), correspondente àquela em que Jeremias aborda as questões do mal segundo a teoria da maldade profokiniana (especialista russo na área do mal) mas igualmente àquela outra em que Jeremias aborda a questão metafísica e ontológica da matemática (na sua perspetiva única de abordar e inventar problemas que não lembrariam a ninguém), a saber, se existem números no ser das letras. Forjando uma ontologia (e filosofia) própria, Jeremias distinguira-se das investigações filosóficas da ontologia matemática, de acordo com a qual se busca responder ao problema dos objetos matemáticos, isto é, se existem números, conjuntos, pontos, etc.; e se a existir, se existem independentes do sujeito; Jeremias, muito à frente, como sempre é apanágio dos iluminados pela centelha da genialidade, procurava saber se há números nas letras. De um modo geral, Jeremias perguntava-se se em cada letra há um número: se em A existe um 1 (assim representado: A*1, ignorando a lógica e atribuindo o asterisco só porque era apelativo esteticamente) e assim sucessivamente. Esta indagação filosófica levou os especialistas à loucura, porquanto estavam efetivamente na confirmação de um génio para o qual ainda não tinham um esquema conceptual, e em razão disso não tinham como explicá-lo (com efeito, esta era a vantagem de Jeremias, na medida em que inventava as maiores barbaridades que, aos olhos dos outros, eram vistas como grandezas intelectuais). Assim, em face desta falha conceptual, académicos de todo o mundo começaram a estudar a fundo sua obra com fito de poderem não só entendê-la efetivamente, mas também promoverem seminários.
O burburinho gerado em torno da obra de Jeremias levou a dizer-se que há um antes e depois de Jeremias. Desde os mais vetustos escritores aos mais insignes académicos, a unanimidade foi (e é) a palavra mais usada. Uns afirmaram que a obra de Jeremias perdurará no tempo até quando o tempo for tempo. Outros afirmaram que a sua obra será estudada por muito tempo, resultando em teses de doutoramento e pós-doutoramento e pós-pós-doutoramento e quem sabe uma nova qualificação académica, tal a força da obra de Jeremias. Outros ainda afirmaram que se ele não receber o Nobel então a consequência será que o prémio deixará de existir, pois não pode um escritor com este talento não receber o Nobel. Enfim, e em resumo, Jeremias tornou-se com efeito num escritor cujo talento ultrapassa já a própria definição de talento.
A obra onde Jeremias disserta sobre o mal foi aquela a que ele deu o nome: O Mal – a Visão de Quem Vê Mal. Escrita quando Jeremias esteve hospedado numa casa de retiro para escritores, explora o mal do ponto de vista de um cego. A personagem criada é uma personagem incaracterística, sem cor, sem cabelo, sem sobrancelhas, sem pestanas, mas com boca e nariz e orelhas, e olhos, embora cegos, e caga e mija como todos os seres humanos, mas também come e bebe e vomita como qualquer ser humano, e anda como qualquer ser humano, e ri-se como qualquer ser humano, e pensa como qualquer ser humano, e fode como qualquer ser humano (exceto os padres, claro), e enfim é uma personagem igual a muitas outras. Porém, distancia-se delas porque tem o mal consigo. O mal nasceu com ela e vive com ela. É uma espécie de demónio que traz dentro de si (segundo leitura apuradíssima dos seus críticos, académicos e legião de fãs) A partir desta ideia, Jeremias explora a personagem de uma forma inusitada. A personagem tem o nome de Judas (atribuição do nome muito discutida pelos académicos) e vive numa residencial. Não tem pais nem familiares chegados e a ajuda do Estado e de algumas pessoas permite-lhe sobreviver. Sendo cego, a vida torna-se-lhe insuportável. Porém, lá vai vivendo como pode e aguenta a sua solidão. No decurso da história vemos Judas a tropeçar num café próximo à residencial e a cair na mesa em que estão sentadas umas pessoas a petiscar umas coisas de bicho animal. Estas, todavia, não se levantam para o auxiliar, mesmo sabendo que é cego. Uma delas, inclusive, pergunta mesmo se «é cego?», ao que o Judas responde que sim, senhora, sou cego, embora a inquisidora soubesse que o era. Desta passagem, diz-nos Jeremias: «a maldade que emanou do cego depois de ter caído é a provada mais do que provada e cientificamente relevante para que afirmemos que o mal é proveniente de quem vê mal, pois que, suponho e explicarei mais à frente esta minha afirmação, se ele não visse tão mal não teria caído, e se não tivesse caído não obteria a reação que obteve dos que foram afetados pela sua queda, pelo que, concluo, a sua maldade é resultado de ver mal.» Mais à frente explica-nos a sua teoria: « a maldade é um conceito relevantemente epistémico que nos permite, de um ponto de vista da hermenêutica da maldade, perceber que se à maldade não estivesse subjacente uma cegueira epidérmica ela não existira. Sendo assim, ela existe.». Esta lógica (comummente usada pelo genial Jeremias) foi entendida como revolucionária. Académicos formularam-na assim: se P então Q, se R então S, e se Y talvez S (p#q. r/s…y – s). As mudanças epistemológicas que resultaram desta formulação têm sido escrutinadas ao mais ínfimo pormenor e não se sabe ainda aonde a lógica poderá ir parar, tal a visão de Jeremias. Alguns têm aventado a possibilidade de que Jeremias poderá ter encontrado a explicação lógica para o absurdo. Mas vejamos o fim da história de Judas. O nosso autor encaminha a personagem para uma situação dilema. Judas encontra-se numa ponte, e esta está prestes a cair. Judas está no meio da ponte e a poucos metros dele encontram-se outras pessoas, quer de um lado, quer do outro. Se Judas se mexer a ponte cai e as pessoas vão atrás. Se Judas se mantiver quieto, a ponte não sofre qualquer abalo. Judas está a olhar para o rio, embora não o possa ver. As pessoas que estão do lado dele também estão mirando o lindo rio que passa sob a ponte. Nem Judas nem as pessoas sabem que a ponte está prestes a cair. Não sabendo de nada (o que por si só não é um dilema, como é bom de se ver), Judas dá um passo e a ponte cai, morrendo todos que se achavam em cima dela. O nosso genial autor dá-nos pois mais uma lição sobre a maldade. Judas provocou a queda da ponte porque é cego, e mais uma vez conclui que a cegueira é a raiz da maldade. Ao longo dessa magistral e «filosoficamente rica» obra, Jeremias «faz deduzir os seus argumentos por meios falaciosamente acertados a fim de concluir que a cegueira é com efeito a razão pela qual e a partir da qual a maldade existe no mundo» (Hugo Cortez de La Muerta).
Porém, a filosofia do mal de Jeremias não foi unicamente explorada nesta obra. Em outros romances filosoficamente relevantes, Jeremias explora o tema do mal. As críticas a essas outras obras não se fizeram esperar, à semelhança de tudo o que Jeremias produz. Sobre a obra Anda um Homem à Caça da Menina na Casa do Vizinho, escreverem os críticos: «Jeremias tem o dom da palavra a faz-nos rever o conceito do mal através da ruína de um homem que busca o prazer através do desassombro metafísico da maldade e onde a memória é a auscultação do medo em que vive a sociedade moderna enclausurada numa redoma identitária mas também constitutiva do ser humano em direção à morte (o ser para a morte heideggeriano sobrevém aqui como em mais lado nenhum) e cuja matéria é imaterialmente uma molécula saída do mais obscuro átomo de infelicidade em que todos nós humanos vivemos» (Vasco Oliveira Martins); outro crítico escrevera que «a forma é o poder de Jeremias» onde «a memória é a matéria que nos transforma em todos humanos», donde que «o ser humano é a mais bela construção de deus» (André de Marvila). Num lampejo de genialidade, um outro crítico conclui que «se Jeremias não escrevesse o mundo não era o mesmo, pois que dos seus livros podemos ver a ruína social e democrática a que chegou a sociedade ocidental. Neste livro, Jeremias põe a nu todas as vicissitudes e idiossincrasias do ser humano, em que o ser-aí de Heidegger sobressai de um rompante filosófico e nos mostra os mistérios que subjazem ao ser humano, ser humano este que já não o é, mas antes foi, pois tudo já fomos o que não somos. E quem perguntar hoje pelo ser humano ou formular a pergunta “quem somos?” certamente obterá como resposta: já fomos. Eis a lição que Jeremias nos dá neste livro poderoso e filosoficamente rico em verdades absolutas, só equiparável à Bíblia» (José de Bettencourt). No romance Passeando no Passeio da Calçada, Jeremias explora o mal do ponto de vista da maldade em si e para si. Segundo entendidos, a maldade em si é aquela maldade por si. E a maldade para si é aquela maldade a si. Disto resultou uma concepção de maldade, ainda não muito explorada, em que o si fundamental para toda a ontologia do mal é o si mesmo. Jeremias explorou em termos lógicos este si, numa obra posterior, e formulou-o desta forma: se si, então si, se não si, então não si. O que dá S (que representa o si) e o S (que representa o si). Assim, temos: s @ s. donde que, s. Esta lógica jeremiana, dizem, tem revolucionado toda a lógica. Porém, como os lógicos são homens astutos, vieram a terreiro dizer, e passamos a citar, «a lógica de Jeremias não é senão uma demonstração da sua indigência intelectual. Podemos afirmar convictamente que Jeremias não percebe nada de nada de lógica, não domina a filosofia e as suas teses são iguais àquilo que expelimos quando nos sentamos numa sanita». Estas declarações foram de imediato atacadas pelos jeremianos, que acusaram os lógicos de homens arrogantes e feios sem qualquer entendimento do que é o ser humano, homens limitados às suas razões lógicas sem sentido» (Sociedade dos Defensores de uma Filosofia Jeremiana).
Como podemos verificar, a obra de Jeremias foi elogiada em todos os cinco cantos do mundo (até nisto os jeremianos são diferentes, pois dizem cinco cantos e não quatro), ora por académicos, ora pela crítica, ora pelos seus leitores. O seu sucesso é proporcional, como está bem de se ver, ao número de leitores que foi tendo, e é nesta perfeita sintonia que Jeremias tem sido elevado “ao maior intelectual vivo” desde a morte do último intelectual morto.
Nas suas palavras, escritas num poema de mil novecentos e noventa e qualquer coisa:
Sou um homem despojado
Vejo a vida de lado
Quando me levanto de manhã
Penso na mamã
Começo a escrever
Mesmo antes de beber
E quando termino
Julgo-me um hino

Jeremias é um man in progress, que, em bom francês, quer dizer um homem burgesso.